palavrinhaserelepe

domingo, 30 de dezembro de 2007

.ônibus.

Quando chegamos para esperar o ônibus das 22h do domingo, ela já estava lá. Foi logo perguntando: “Vai descer logo?” “O quê?” “Será que o ônibus chega logo? Que horas são?”. Ela tinha relógio, depois olhou a hora, mas era bom mesmo ter perguntado, já era quase 22h e ela achava que era 21h. Disse que já tinha trabalhado no cabaré do Gaúcho, que fazia o melhor strip tease de lá. Mas não disse logo, não. Era como se tivesse naquilo uma vergonha, mas precisava divulgar o seu trabalho de prostituta. Disse, entre outras conversas, que o marido tinha expulsado ela de casa, que não gostava de mulher e que queria arrumar o cabelo.

Quando entramos no ônibus, que eu achava que era o primeiro depois que o shopping tinha fechado, encontrei um monte de crianças, sacolas de compras de lojas de departamento, uma revista com a foto de Nicole Kidman, uma criança com vontade de vomitar, do lado de outra que lia um livrinho colorido com o desenho de uma amarelinha e do pai que insistiu pra que ela levasse a boneca que tinham comprado. Quase não ficou espaço na janela pra caso ela quisesse vomitar.

Sentei ao lado de um bêbado. Lá pras tantas, entrou a evangélica com o seu vestido vermelho de bolinhas brancas como o seu cabelo. Ofereci o lugar. “Tu vai descer logo?” “Não, mas pode sentar se quiser” “Ah, então deixa. Leve só a minha bíblia”. Insisti. Não. “Passou um ainda agora, mas eu não pego ônibus cheio.” “Agora já pode sentar.” Parada solicitada. Desejei Feliz Ano Novo pra prostituta. “Tu é bonita. Imagina esse corpão?”

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

.a morte.

Eu morri. Esta que hoje habita o meu corpo, que escreve as minhas palavras, não sou eu, é outra.

E me resta a memória. A alma que ficou do que eu fui e não consigo mais ser.

Se ao menos eu não lembrasse... Seria mais fácil viver como esta nova pessoa que me ocupa.

Talvez tenha sido aquela vez em que meu pai chegou bêbado ao meu aniversário trazendo a boneca que eu queria.
Talvez tenha sido o zero na minha primeira redação.
Talvez tenha sido aquela vez em que decepcionei minha mãe.
Talvez tenha sido a desilusão com o curso.
Talvez tenha sido o erro que cometi no trabalho.
Talvez tenha sido a traição do meu namorado.
Talvez tenha sido aquele amigo com quem perdi contato.
Talvez tenha sido as palavras que ouvi.
Talvez tenha sido saudade.

Muitos foram os motivos que me fizeram morrer.

O pior de tudo é que vivo. Vivo para sentir a morte repetidas vezes. E ter esperança de vida. E morrer.

Viver é morrer e resistir à morte.